Diário de Bordo

Carta ao professor orientador do trabalho explicando o conceito e sequência de eventos na elaboração do roteiro "Os Argonautas".

Quando decidimos trabalhar o tema "Culturas de juventude e rebeldia", e sobre este me coube a feitura de um roteiro, alguns elementos pareceram-me imprenscindíveis na reflexão que eu gostaria de ascender:
1) A tempestuosidade da juventude que aliada a um condicionamento ideológico adequado a transforma em alvo fácil de instrumentalização por interesses políticos e econômicos alheios;
2) A manipulação desses interesses no século XX, onde o jovem estréia como ultra-potente ator social em movimentos contestatórios que vão do nazi-fascismo, e seu caráter intrinsicamente coletivo, ao hedonismo pós-moderno e apologético do "eu";
3) Os sentimentos extremados dessa fase da vida onde experienciamos verdadeiras epopéias internas e a impressão melodramática que isso causa externamente;
4) O caráter melodramático da própria sociedade do nosso tempo fertilizada pela experiência cinematográfica.

Para expressar essas idéias tornava-se necessária uma história onde um personagem coletivo e geracional fosse tão importante quanto alguns heróis individualizados (de preferência um típico casal idealizado). Foi quando me lembrei do mito mais antigo que conheço sobre jovens que empreendem uma luta vã que dá em lugar nenhum, convocada por um rei que só está interessado na manutenção de seus próprios interesses: Os argonautas.

A conquista do velocino de ouro, ambicionada pela obtenção de fama e fortuna, a juventude de duas pátrias convulsionada numa guerra inútil (O rei prometera o trono a Jasão caso este conseguisse o velocino, e entretanto não o cumpre. Jasão acaba exilado e os Argonautas dispersos), uma princesa se rebelando, por amor, contra a autoridade paterna, uma fuga monumental, etc. seriam ingredientes ideais para o roteiro, com matizes épicos e melodramáticos que eu desejava, sobre um grupo de jovens impulsivos usados numa manobra política e econômica (o velocino traz fortuna a quem o possui). Era perfeito.

Quando nos reunimos para concluir a escolha dos eventos a serem focados no trabalho, fechamos em quatro processos culminantes onde o jovem aparece ao mesmo tempo como alvo e agente:
1) Juventude Hitlerista;
2) Moda divulgada através de astros de cinema nos anos 50
3) Movimentos estudantis de 68 (claro);
4) Pós-modernismo.

Mas estes conteúdos tinham de ser incorporados ao roteiro. Até aqui eu sabia que ele versava sobre o mito dos argonautas, com as discussões internas citadas acima e que teria um formato melodramático com tons épicos. Foi quando percebi que a melhor moldura a adotar seria a mais evidente e que oferecia mais possibilidades críticas: a narrativa clássica do cinema americano, à Griffith. Este, além de formular uma metodologia ainda seguida, com algumas atualizações, até hoje, deu-nos o primeira longa-metragem da história, "O nascimento de uma nação", uma epopéia sobre a concepção da Ku Klux Klan, entre jovens brancos frustrados pelo resultado da guerra civil estadunidense.

Imaginei que uma música clássica, grandiloquente, a acompanhar todo o vídeo, enfatizaria o tom épico desejado e a que se revelou mais ideal para esse efeito, e para referência interna, foi "A cavalgada das Valkírias" de Richard Wagner. Trata-se de uma música emblemática, por excelência, do cinema, usada tanto no acompanhamento original para a melhor sequência de "O nascimento de uma nação" (aquela em que os cavaleiros da Ku Klux Klan iniciam uma marcha galopante por estradinhas de terra para resgatar brancos em poder dos ameaçadores negros), quanto na cena das novas Valkírias - helicópteros, em perseguição vingadora aos vietcongues, e como tema a Darth Vader (e o renascimento do cinemão americano) em "Star Wars".

Pesquizando uma fonte literária sobre o mito dos argonautas para servir como base ao roteiro deparei-me com a versão de Gustav Schwab em "As mais belas histórias da antiguidade" (o que por si daria um ótimo subtítulo). Schwab é um autor tardio do romantismo alemão, muito popular até meados desse século, sendo editado em livros didáticos de literatura no que era o equivalente ao primeiro grau das escolas alemãs (basta lembrar que Thomas Mann lia ávidamente suas histórias na infância). Sua obra está repleta de sentimentais composições dramáticas que evoluíram progressivamente até o melodrama. Além disso foi também um dos autores preferidos para as fontes de R. Wagner, que por sua vez, foi um dos compositores prediletos do nazismo e, ao que parece, do próprio Hitler, concluindo assim uma cadeia de referências internas ao argumento.

Fechada a sustentação externa do roteiro no cinema clássico, descobri que seria interessante calcar suas partes constitutivas em experimentações do chamado "cinema moderno" e a mais latejante revelou-se o citacionismo. Este, nascido com a Nouvelle Vague e utilizado criticamente por Godard, ou como homenagem inteligente e auto-referencial em obras de outros diretores do período, acabou descambando no fetiche pasteurizado de Baz Luhrman.

Outras criações estruturais do cinema moderno poderiam enriquecer algumas pequenas experiências do vídeo como o "efeito Kulechov" que consistia na contraposição de um mesmo plano a outros diversos, causando um deslocamento de seu sentido original e a criação de um novo. Posso dar o exemplo de duas tentativas nessa direção: A primeira consiste na sequência em que o mesmo plano de Alex, com os olhos esbugalhados por pinças mecânicas, contraposto por planos de cenas banais pode causar a impressão de desgosto em ser obrigado a assisti-las, e quando contraposto a cenas de violência explícita pode causar a sensação de profundo mal estar. A segunda consiste na sequência onde um tiro de canhão é disparado num plano e onde no seguinte a lua aparece com o "olho" atingido, ainda, logo após vemos o Titanic afundando, estabalecendo assim uma relação causal entre planos originalmente desconexos.

Mas, sobretudo, eu tinha vontade de tentar as experimentações de Eisenstein e sua "Montagem de atrações". A teoria de sobrepor um plano a outro e criar um terceiro plano mental abre infinito campo de possibilidades e é isto o que eu testei em diversos momentos no roteiro. Aqui posso dar o exemplo da moto que anda em círculos sequenciando a marcha dos argonautas que, para mim, alude a um padrão imemorial de repetição da dominação ideológica. O personagem coletivo e digressões com o tempo foram outras experimentações do cineasta que pretendi exercitar, como quando testemunhamos o Titanic afundar no mar e alguns planos depois vemos Leonardo DiCaprio e Kate Winslet encontrarem-se no convés.

Assim, estabelecidas as referências conceituais e pesquisados os planos para a manufatura do roteiro, dividi-o ainda em três atos, clássica estruturação de vários "dramas burgueses" como os de Tchekov (de quem particularmente gosto muito, mas há que libertar-se!) e foi quando percebi, surpreso, que o roteiro e seus três momentos refletem o que definimos como campo de trabalho dentro do tema. Ali estava o entusiasmo da juventude Hitlerista na convocação dos argonautas, a alegria dourada dos anos 50 no baile onde Jasão e Medéia se conhecem, os conflitos estudantis e a guerra do Vietnã refletidos na luta entre anfitriões e viajantes e a união final entre alienação delinquente e política em...Ops, entre alienação e política delinquente...Epa, entre Alex e o governador delinquente no jogo de espelhos de "Laranja Mecânica".


Ricardo Cardoso.
São Paulo, 31 de julho de 2009